terça-feira, 25 de outubro de 2016

Saramago e eu

Fomos com um grupo jantar fora, à nossa frente estava um amigo que gosta muito de ler, lê muito, diz ele e nota-se, pela sua fluência, pelos seus conhecimentos, pelo seu ser e sentir. Vai daí que  falou em livros e  mencionou vários autores modernos e clássicos que tem lido, só Saramago é que não, que é "muito massudo e chato, que não usa pontuação que é muito difícil"! Logo ali me propus reler Memorial do Convento, contudo ao abeirar-me da estante à procura do nosso NOBEL DA LITERATURA dei de caras com Cadernos de Lanzarote,  um diário muito interessante  que estou lendo devagar como convém aos escritos de  Saramago e se "vida havendo e saúde não faltando" esta leitura chegará ao fim!
   Claro que não é um escritor que se possa ler como quem vai ali e já vem, como quem vai apressadamente apanhar o autocarro, não, não é leitura que se possa definir como apressada mas pensada, pausada e repetida para finalmente darmos por nós a pensar:
-Mas como é que este homem diz isto, um pensamento tão elevado, de uma maneira tão simples? como é que ele afinal diz o que eu penso de uma maneira que eu não saberia expressar?
Porque eu também, como ele, " Como sinal da idade, sinto uma nova preocupação de ir buscar na cara dos outros e nas fotografias recentes, os estragos que supunha  ainda não me terem marcado", contudo sei que em cada minuto que passa  "o que era deixou de ser", o que me vale é que " também em cada minuto vou restaurando de memória a memória do que fui,  e sei que "sou em cada momento a outra  e a mesmo"
É por isto, e por muito mais, que me falta engenho e arte para expôr, que considero que foi muito justo que o  primeiro Nobel da literatura para a língua portuguesa, tenha sido dado a este português, porque ele soube dizer de forma muito simples o que eu penso, que estou a envelhecer, que procuro esses sinais nos outros , no espelho e nas fotografias mas que me sinto sempre aquela menina de laçarote a cujas memórias me agarro fortemente para levar de forma descontraída e de certa forma elegante, esta caminhada até ao fim!

"Trotas", carinho e gratidão

Ontem o tempo esteve chuvoso, ventoso e frio, um verdadeiro dia de Outono! Fiquei por casa, e resolvi limpar e arrumar umas gavetas e armários, tarefa morosa e, por vezes aborrecida. Estive entretida e ao encontrar as minhas torteiras, recipientes rectangulares para apresentar tortas, como que por magia o tempo recuou aos meus primeiros anos de professora em que se costumava lembrar o Natal, o Carnaval e outras datas dignas de relevo com actividades adequadas ao tema e com um pequeno lanche em que as famílias participavam; as mães faziam bolos e outras guloseimas que faziam a alegria da criançada. Adorava perguntar a um dos alunos, embora já adivinhasse a resposta:
- O que vai fazer a tua mãe para o lanche?
- A minha mãe vai fazer uma "trota"!
E eu que como professora devia corrigir o aluno, olhava para a simplicidade e beleza daqueles olhos azuis e daqueles cabelos loiros e dizia :
- Deus permita que fique tão boa como a última que ela fez...
- Vai ficar - dizia ele - porque a minha mãe é muito boa a fazer "trotas"!
E tinha razão porque a mãe punha carinho em tudo o que fazia e dizia,o carinho brincava-lhe no sorriso e na doçura das palavras. 
E vai daí, que por causa das minhas torteiras e de um agradecimento publicado no facebook, pelo seu irmão, quando do internamento do seu pai no hospital de de Angra do Heroísmo, me lembrei desta história e destes pais que souberam incutir o valor da gratidão nos seus filhos que
têm presente a lembrança do que foram para eles e para a comunidade.
 Não tenho "Trotas" para te oferecer, mas tenho as minhas torteiras para te mostrar e, do meu velho caderno,  uma receita manuscrita e meio apagada que diz o seguinte:
 Receita de torta Viana da mãe dos manos Francisco Alberto e Rui Nogueira :
70 gramas de farinha, 100 gramas de açúcar, 2 ovos.
Batem-se os ovos com o açúcar até ficar um creme grosso, depois junta-se a farinha peneirada e as claras batidas em castelo.Vai ao forno em tabuleiro bem untado.
Recheia-se com marmelada misturada com um pouquinho de vinho do Porto.
Nota: Para ficar uma torta grande dobra-se a receita.
Quanto a mim ela, na sua boa vontade, triplicava ou quadruplicava a receita pois as ditas "trotas" eram  tão abundantes que saciavam toda a classe e ainda sobejava!
E então eu, para entrar com o aluno dizia-lhe:
-Mas que rica "trota" fez a tua mãe!
E ele ria, ria, todo contente, sabendo que pela vida fora, podia contar com o carinho da sua mãe.