domingo, 27 de junho de 2021

Nunca fiando...

 Quando os avós do meu marido vieram da América, bem no início do séc. passado, fixaram residência na freguesia do Raminho, na costa noroeste da ilha Terceira, limitada a leste pela freguesia dos Altares e a oeste pela freguesia da Serreta, numa casa erguida num local alto, calmo e soalheiro onde se vislumbra o Oceano Atlântico com as ilhas Graciosa e S. Jorge no horizonte. Constatando que a localidade precisava de um local que prestasse serviços na área do comércio, abriram uma mercearia ou como então se dizia, uma venda. O tempo foi passando, o avô faleceu e a avó aguentando estoicamente até que, dando a mão à palmatória, teve que abandonar tudo e deslocar-se para junto da filha.

Uma História muito vulgar e comum a muitas famílias e anciãos que, involuntariamente,  se despedem das suas casa e haveres à procura de ajuda e apoio dos mais novos, quem sabe a história não está prestes a repetir-se para muitos de nós!?

Lá ficou a casa vazia, sem alma, a degradar-se até que, estando  em vias de recuperação lá fui com o meu marido e os técnicos competentes, vai daí que os meus olhos deram com um quadro muito maltratado, de fiados e haveres, peça tradicional do início do séc. passado em tudo o que era comércio, que era como que um amuleto para os comerciantes quando instados a fiarem respondiam:

- Aqui não se fia, olha para a parede e vê em que estado fica quem fia!...

Ao olhar aquela estampa lembrei-me dos meus tempos de meninice, do rol que havia nas mercearias, pois os merceeiros fiavam  só às pessoas da sua confiança, que pagavam no fim do mês ou da semana, e das compras que ia fazer a mando da minha mãe, que não tinham nada a ver com as compras que se fazem atualmente. 

Meio Kg de açúcar, um quarto de kg de arroz, petróleo, um pouco de temperos, nem farinha, nem ovos, nem grão, nem manteiga, nem vinagre, nem banha nem frango nem carne, nem leite, nem hortaliças, nem legumes, tudo isso era de casa , tudo isso era fruto do trabalho resiliente, persistente e de muito amor com que os meus pais se dedicavam à vida...

Ai, mas que alegria quando eu tinha 10 centavos e ia à venda do Sr. Guilherme ou do Sr. José Linhares comprar alfarrobas que eram embrulhadas em papel pardo que o merceeiro fechava com um jeito dos dedos que me fascinava! No regresso, os calcanhares batiam-me no rabo de tanto correr para chegar a casa e a minha mãe permitir que eu comesse algumas e guardasse as restantes para outro dia...

Estou a ver, as mãos calejadas, de trabalho, da minha mãe, a alisar docemente, o pedaço de papel pardo que guardava cuidadosamente, na gaveta do louceiro para ser usado novamente... Estou em crer que foi por causa desse pedaço de papel que me ficou este jeito de poupar, guardar, reciclar e de olhar as coisas que, para muitas pessoas são imprestáveis, com uma vontade de lhes proporcionar uma segunda oportunidade, de lhes dar crédito!